A quem interessa essa nudez prolífica de rio –
o derramar-se uma única vez – em quem?
O desamarrar-se em quem é a pólis do rio
o descamar-se em vertentes
o desarmar-se – em quem?
Micronarrativas
Dirigia por todas as estradas. Nenhuma o levou para casa.
Era tão semelhante aos pais – ficou preso num espelho – Freud.
Lamento informar que nasci quando a morte levou meu nome.
Belo, inútil, só. Levaria a vida. Caminhando sem ruído.
Ninguém sabe como surgiu aquele tridente.
Só se lembra da luz.
Depois dos trinta, chamaram-no Trigésimo.
Esculpiu o tempo. Russo e cheio de paragens.
Sobreviveu à Sibéria. Lá, sonhou o divã e o machado.
Queria ser escritor. Mas só escreveu 10 frases.
—
por ocasião do desafio Literária de microcontos.
Zap
Daquilo que ainda sinto no ar
quando fecho os olhos
e vejo ao longe
daquilo que por obrigação
se transforma no ar que respiro
não é por fechar os olhos
mas sem fechá-los
eu veria?
Atrás de uma montanha
calcinada
e da paideia
Santa Fé dos ossos de O’keeffe
sobre o flanco Pedernal
bones, ossos de carneiro
flutuando em Ghost Ranch
a flor a pedra
take time to look
inscrito no que há de vento
dentro delas
propícias a esses ventos
formas calcárias de forças
imiscuídas en pueblo
e taos
andemos
sobre lajotas pintadas
com óleo diesel queimado
a casa de Ruy Ohtake
por pessoas que lutaram a luta armada
cultivemos
pilotis
platibandas
deques
quem sabe a arquitetura moderna japonesa
em diálogo com o modernismo brasileiro
casa feita à irmã e luto
já não o vidro e o adobe
ressoando as paisagens
mas o componente espiritual
na concepção arquitetônica
invadindo de alusão
esse espaço tinindo
do ar que eu reviro
todos os dias imantada na imanência
todos os dias uma forma
uma concepção arquitetônica
um modo de levantar o pé direito
e ver as luzes chegarem.
Bruxa
A cada dia, torno-me um tipo de bruxa secular, movida em esteira de ignomínias. Uma bruxa sem poção, imantada por ódios e queixumes protestados na dívida pública dos criadores de caso. Uma bruxa-burocrática cuja interioridade se fomenta da mácula dos dias e que transborda silêncio como se desfiasse sua língua por longos quartéis-generais. Um ser feito da matéria que lhe envenena, que usa a própria carne para fazer valer seu protesto. Antes, devota a língua. A língua que borda o suor dos incautos. A língua de que deriva o primeiro pó da guerra. A língua que é o arbítrio dos que lhe ignoram. E porque é uma bruxa, tudo isso reverberá de algum modo incalculado não só por sagões e cercanias de alarmes luxuosos, mas por onde provém sua força vaticinal e bruxuleante, força de bruxa, vagalumeada pelas sombras que lhe são irmãs. Sua força reversa de facas e guilhotinas, já antiga e sempre renovada. Sua força adversa, antimatéria para os olhos, primeira matéria das mãos, torneada por brisas ou furacões, natureza sem razão de ser, onde o sagrado exerce sua temperância porque sabe, com justeza, o que é o tempo.
O meu corpo
que é um corpo fêmeo
que é um corpo que sangra
que não é um corpo negro
um corpo é preciso dizer
que é um corpo é preciso
repetir a palavra corpo
o meu corpo
fêmeo que sangra
que não é negro
que é preciso dizer
se abrir para parir
que se viola
que se abusa
que é o corpo de mulher
mas o corpo da mulher
branca, que não labora
um terço do corpo negro
que é um corpo social
com privilégios sociais
que é um corpo branco
fetichizado porque é
um corpo fêmeo
um corpo que já amou
corpos fêmeos
é um corpo que já se nutriu
do sangue de corpos negros
é um corpo aberto
é um corpo histórico
um corpo se abre
para nascer lutar
contra o que em si
é a perpetuação
da própria ruína dos corpos.